quinta-feira, 16 de março de 2023

A arquitetura como reflexo da condição humana em "The Last of Us"

Vinte anos após o nascimento do cinema, o espectador já se familiarizava com imagens catastróficas pós-apocalípticas. O cinema nasceu no final do século XIX, mais precisamente em 1896, com a exibição do aparelho chamado cinematógrafo, capaz de projetar imagens em movimento. Na estreia, os irmãos Lumière exibiram alguns curtas, impressionando o público com o movimento projetado em uma superfície bidimensional. Embora existam registros de pequenas filmagens datadas meses antes desse evento, A chegada de um trem na estação, um dos curtas exibidos no evento e filmado pelos próprios irmãos Lumiére, é considerado o primeiro filme do mundo. 



Os primeiros filmes tinham pouco enredo narrativo, mas isso durou pouco tempo. Já em 1916, exatos 20 anos após o nascimento do cinema, o cineasta dinamarquês August Blom dirigiu Verdens Undergang, traduzindo para o inglês como The End of the World (O fim do mundo). O filme retrata uma catástrofe mundial quando um cometa passa pela terra, deixando cidades e espaços destruídos ou tomados por água.


Isso mostra um interesse desde muito cedo por partes dos cineastas a compor espaços destruídos e em retratar uma arquitetura devastada, seja por catástrofes naturais, zumbis, robôs, extraterrestres, ou fungos, como no caso da série lançada recentemente, The Last of Us.

A série é baseada em uma franquia de jogos eletrônicos de ação-aventura de mesmo nome. A narrativa apresenta a humanidade vinte anos depois de sofrer uma infecção fúngica severa, capaz de transformar pessoas em verdadeiros monstros-zumbis (ou quase isso), chamados de infectados. 


Os primeiros minutos do episódio 01 se passam na cidade de Austin, no Texas, vinte anos antes do contágio, com os personagens Joel e Sarah (pai e filha) vivendo a vida normalmente.

Ainda no primeiro episódio, o contágio se espalha muito rapidamente e o caos se instala na cidade. Num salto temporal de 20 anos, a série nos apresenta a atual cidade de Boston, subsistindo aos eventos passados. A sociedade sobrevivente se dividiu como pôde, novas formas de governo foram criadas e alguma parte dela se estabeleceu em locais seguros, cercados por fortalezas e livre de infectados.  

Um dos primeiros reflexos que temos de um universo pós-apocalíptico, sem necessidades de muitas explicações ou outros esclarecimentos, é percebido na arquitetura de uma cidade devastada. No decorrer da narrativa, alguns personagens precisam atravessar uma zona perigosa para chegar ao capitólio da cidade. As cenas que acompanham essa jornada apresentam locais agora completamente inabitáveis por conta do risco de infecção, nos quais é possível observar a degradação do espaço: edificações em ruínas e tomadas pela vegetação em decorrência dos vinte anos de abandono, escombros, crateras e carros abandonados. 

É nesse momento que a série revela com alguns planos uma relação interessante entre a arquitetura e o cordyceps, nome científico do fungo causador do contágio. Depois de contaminados, os seres humanos sofrem alguns estágios de infecção. No último deles, o fungo toma conta de todo o organismo e o corpo perde suas características originais, fazendo com que os infectados pareçam fungos gigantes. Mas, além dos seres humanos, os fungos também se apropriam e alteram as características da arquitetura e da cidade. Como ramificações, eles espalham tentáculos fúngicos nas fachadas, ruas e calçadas. Isso torna The Last of Us diferente do cinema pós-apocalíptico onde a narrativa se concentra em algum tipo de contaminação, como zumbis, por exemplo, onde o ambiente caótico se reflete apenas na destruição e abandono da arquitetura.


Podemos analisar a arquitetura da série à luz dos escritos de Juhani Pallasmaa, teórico e arquiteto finlandês que reflete sobre as experiências que a arquitetura proporciona. Pallasmaa afirma que a arquitetura reforça a nossa experiência existencial e a nossa sensação de pertencer ao mundo. Ou seja, a rua em que vivemos na infância, os prédios e outras edificações que vemos no caminho de volta pra casa e o espaço onde moramos reforçam nossa identidade pessoal. Proporcionam-nos pertencimento à nossa cidade e aos espaços que usufruímos. A arquitetura apresenta em seus desenhos, detalhes e composições as escolhas do ser humano, de um outro ser em comum conosco, que projetou os espaços para um funcionamento eficiente das cidades:

 

Quando trabalham, tanto o artista quanto o artesão estão diretamente envolvidos com seu corpo em suas experiências existenciais (...). Um arquiteto perspicaz trabalha com todo seu corpo e sua identidade. Ao trabalhar em um prédio ou objeto, o arquiteto está simultaneamente envolvido em uma perspectiva inversa, sua autoimagem ou, mais precisamente, sua experiência existencial. No trabalho criativo, há identificação e projeção poderosas; toda a comunicação corporal e mental do criador se torna o terreno da obra. — Juhani Pallasmaa


Quando os personagens se deparam com rastros fúngicos tomando conta daquilo que um dia proporcionou a experiência de pertencer ao mundo, há uma falta de identificação, refletidas por ramificações ameaçadoras e desenhos não humanos. Os fungos também crescem no subsolo e se espalham pela superfície com fibras longas que podem chegar a mais de mil metros. Além disso, se comportam como um organismo único, com alguma forma de conexão que possibilita a comunicação entre os infectados em diferentes locais. Isso quer dizer que se os sobreviventes pisarem em uma área de cordyceps, podem acordar e atrair dezenas de infectados de outro local. Isso implica que, além da falta de identificação presente nas fachadas, há também a falta de liberdade de ir e vir mesmo em locais onde não há infectados. Pallasmaa afirma que a cidade existe por meio da nossa experiência corporal:

Eu confronto a cidade com meu corpo; minhas pernas medem o comprimento da arcada e a largura da praça; meus olhos fixos inconscientemente projetam meu corpo na fachada da catedral, onde ele perambula sobre molduras e curvas, sentindo o tamanho de recuos e projeções; meu peso encontra a massa da porta da catedral e minha mão agarra a maçaneta enquanto mergulho na escuridão do interior. Eu me experimento na cidade; a cidade existe por meio de minha experiência corporal. A cidade e meu corpo se complementam e se definem. Eu moro na cidade, e a cidade mora em mim. — Juhani Pallasmaa


A Boston de The Last of Us não permite mais a experiência descrita acima por Pallasmaa, pelo fato de ter sido tomada dos seres humanos e se transformado em um espaço hostil. Isso corrobora o conceito do autor sobre identificação e experiência arquitetônica. Pallasmaa ainda diz que quando experimentamos a arte [arquitetura] ocorre um intercâmbio peculiar: nós emprestamos nossas emoções e associações ao espaço e o espaço nos empresta a sua aura, que incita nossas percepções e pensamentos, e nesse caso a experiência e percepções proporcionadas por esse ambiente é de falta de pertencimento.

Ao mesmo tempo que proporciona essas experiências, a arquitetura carrega em suas formas, destroços e ruínas uma memória. Pallasmaa a considera um instrumento e museu do tempo, através da qual podemos tomar conhecimento do que se passou na história, mantendo-se como uma testemunha silenciosa.


E nós, enquanto espectadores, quando mergulhamos em cenários distópicos como esse onde nossos maiores medos e ameaças podem ser vislumbrados, somos atravessados por experiências cinematográficas e também arquitetônicas. Por que não? Através da imagem, vemos, reconhecemos e assimilamos toda a memória que elas carregam. Imaginamos como foram um dia, na sua forma estética e funcional. Sobre a imagem da arquitetura projetada em filmes, fotografias e outras formas artísticas, Pallasmaa afirma que na sua condição de desgaste e ruína, a arquitetura evoca uma atmosfera emocional. A erosão remove as camadas de utilidade e articulação de detalhes, lançando-a numa esfera de inutilidade, nostalgia e melancolia. Nesse sentido, além de nos ajudar a refletir sobre cenários imaginários, o cinema nos ajuda também a entender a arquitetura além de um papel projetual ou cenário passivo.


Fonte: Archdaily | Março 2023

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